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quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Falando de arte a propósito de Literatura

Em tempos pertenci a um grupo de leitura. Nele descobri autores e livros que decididamente me marcaram. Um desses autores foi Paul Auster. Comecei com o livro “Inventar a Solidão” que me fez mergulhar num mundo inesperado em que forçosamente fui obrigada a olhar para dentro de mim mesma, estabelecendo analogias entre o que lia e as minhas próprias vivências. Fiquei maravilhada com a possibilidade de reflexão sobre as fragilidades humanas que o livro permite. Obviamente que há muitos outros aspectos a ter em consideração. Compulsivamente li outros livros do mesmo autor. Gostei de vários, mas nenhum como este.

Há poucos dias atrás, estava eu a divagar pela Internet, à procura nem eu mesma sei de quê e deparei-me com um blog em que a autora, Cláudia de Sousa Dias, apresentava nada mais , nada menos, do que uma análise do conteúdo do referido livro. Não consegui resistir à vontade de partilhar consigo um momento que me disse muito quer ao coração, quer à razão. Espero que o aprecie. Espero igualmente que, ao ler o artigo que se segue, fique tentado a proceder à leitura deste livro que, sem dúvida, é uma obra de arte.

"Inventar a Solidão" de Paul Auster (ASA)

Este é mais um best-seller austeriano que, apesar de já ter sido publicado em 1982 nos EUA, só agora foi editado em Portugal.

O livro é composto por duas partes sendo a primeira intitulada de “Retrato de um Homem Invisível”. Aqui o autor tenta, ao longo de cerca de 90 páginas, recuperar a memória do seu pai, num esforço de reinventar a sua vida após uma morte súbita.

É então que dá de caras com o inesperado. A descoberta das circunstâncias que rodearam a misteriosa morte do avô e condicionaram a vida e a personalidade do pai bem como o grau de coesão da sua família e natureza dos laços afectivos que ligam os seus membros.

O teor deste livro genial é-nos dado logo na epígrafe inicial de Heraclito que avisa o leitor de que: “Na busca da verdade, prepara-te para o inesperado, pois é difícil descobri-la e, quando a encontramos, encontramos a perplexidade”.

O choque provocado pela morte do pai que impulsiona o autor a tentar reconstruir a sua vida, leva-o a recorrer à memória – tema que ocupa toda a segunda parte intitulada “O Livro da Memória” – obrigando-o a fazer uma regressão no tempo e a dissecar as diferentes facetas da personalidade do seu progenitor, expondo os seu aspectos positivos e negativos e, simultaneamente, a encontrar-se a si mesmo.

Durante o período que medeia essa mesma reconstrução, o Autor tem um encontro com o inesperado numa velha fotografia de família, rasgada e colada na qual a avó posa, rodeada de todos os seus filhos.

A fotografia faz lembrar, um espelho quebrado, na qual parece haver no entanto algo ou alguém que foi obliterado, apagado do registo fotográfico e das vidas dos restantes membros da família…

É então que a verdade vem colidir violentamente com o autor, deixando-o como que esmagado. Subitamente, tudo se torna inteligível…

Na segunda parte, já referida e intitulada “O Livro da Memória”, o autor tenta reconstruir os passos e toda a ambiência que precede o processo criativo do profissional da escrita. Trata-se de um conjunto de narrativas cujo objectivo é a construção de episódios com detalhes susceptíveis de cativarem a atenção do leitor e, sobretudo, de quem escreve.

Auster decompõe todo o acto de escrever, bem como toda a envolvente física e psíquica que fazem parte do processo de reconstrução da memória.

Para isso, tem de recuperar os momentos e episódios que marcaram a sua vida, coincidências e paralelismos que estabelecem um fio condutor quando se trata de escrita criativa, que o escritor reveste com as suas próprias significações.

Neste Livro da Memória, o discurso de Auster é, sobretudo, argumentativo, técnico, recorrendo o Autor aos saberes e experiências adquiridos. Mas também está presente o discurso emocional, como no episódio em que Auster descreve o quarto de Anne Frank ou um campo de refugiados do Cambodja no qual destaca a indiferença do mundo Ocidental face ao extermínio em massa. A banalização do Holocausto transformado em espectáculo televisivo ou em propaganda política.

Auster prossegue a exploração dos caminhos da memória estabelecendo um paralelismo entre a sua própria vida e a de algumas personagens que cruzaram o seu caminho: o pai ou o compositor com o qual compartilhou o quarto durante a sua estada em Paris; a relação de Rembrandt com o seu filho Titus justaposta com a sua e do seu próprio filho, Daniel.

Escrever é, para o autor, evitar o desaparecimento daqueles que mais ama; é uma forma de lhes conferir imortalidade, numa luta insana contra a morte para salvar os seus entes queridos de serem tragados pelo tubarão.

É especialmente significativa a interpretação que Auster faz do episódio de Pinocchio e Gepeto no ventre do Tubarão: o filho, para crescer, tem de salvar o pai. O Autor para assumir a sua função de pai, tornando-se adulto, tem, antes de mais, de resgatar o próprio pai das garras da morte.

O título do livro “Inventar a Solidão” tem, a ver com o acto de escrever. Porque, para ele, cada livro é a imagem da solidão e cada livro escrito é um acto de solidão partilhada, construído num abismo de silêncio, como explica na parábola bíblica de Jonas no ventre da baleia.

O autor fala, sobretudo, do passado, mas lembra que falar do futuro implica a utilização de uma linguagem que aqueles que vivem no presente não entendem, por isso as profecias estão, desde logo, condenadas ao descrédito como acontecia com Cassandra, a princesa visionária. Auster faz uma análise brilhante do extracto de da “Ilíada” de Homero que corresponde ao discurso da princesa troiana. Tal como no poema, existe a tendência, neste “Livro da Memória”, para o leitor mais desatento se perder um pouco, ao contrário do que acontece na primeira parte, onde é mais fácil seguir o fio condutor do raciocínio deste genial escritor-poeta.

A escrita de Auster é fria, argumentativa, extremamente analítica e dialéctica. Mas também de carácter associativo, em que cada pensamento remete para um outro numa pluralidade de ramificações e significações que se desdobram e que se aglutinam umas às outras num alucinante vórtice cerebral.

Um livro que pretende demonstrar que escrever é inventar a solidão para depois partilhá-la. Que, sem ser directivo, mostra o caminho para o auto-conhecimento.

Porque todo o livro que implique uma escrita criativa é um livro de memória.

Para prolongar o momento até à eternidade.

Cláudia de Sousa Dias

http://hasempreumlivro.blogspot.com/2005/04/inventar-solido-de-paul-auster-asa.html

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